sábado, 11 de julho de 2015

Aliciar

De repente ela.
Com toda aquela antipatia, de preto, sem cerimônia, sem hipocrisia, sem pontuação, sem vocativos, como uma seta.
Fumou o cigarro, me olhou, pensou que eu devia ser uma delícia, disfarçou.
Não li aquelas entrelinhas, mas também me interessei.
Um escândalo, voluptuosa, de carne e osso.
Irresistivelmente delineada para pisotear qualquer juízo.
Eu vi nos olhos.
Aquela penetrância negra e misteriosa estava me invadindo. E eu fiquei sem ar.
Eu ia trabalhar, ela também.
Eu corria o risco de nunca mais salivar olhando aquela boca aveludando o batom vermelho-comunista.
Eu não queria.
Já naquele breve momento não estava pronta pra deixar passar.
Preferia aqueles olhos de ressaca, arrebentando na minha fortaleza, até destruí-la.
Até me afogar.
Não precisava me ganhar, eu já tinha me rendido.
Eu tinha apenas uma chance.
Uma chance de confessar, de implorar pra ela me arrebatar, de pedir pra ela me levar pra vida dela e me deixar acorrentada em algum lugar de onde eu talvez nunca mais pudesse sair.
Ela deu o tom: Frida. E eu Kahlo.
Descobrimos que ela é mais Caetano, eu sou mais Chico.
Logo depois ela Almodóvar e eu Tarantino, convicta!
Aí ela Bethânia, e eu Gal.
Ela Zélia, eu Marina.
Ela Calcanhotto, e eu apenas e humildemente Gadú.
Ela mostrou mais seu lado Dalí, eu deixei ela ver um pouco do lado Pollock.
Então ela The Cure, aí eu The Smiths.
Ela Radiohead, eu Silverchair.
Ela descobriu que eu Rodin, e ela me falou que ela Michelangelo.
Ela Lord Byron, eu só Álvares de Azevedo.
Ela Alan Poe, eu Hermingway.
Ela Bram Stoker, eu Mary Shelley.
Eu tão Camilo Castelo Branco... E ela tão Gil Vicente!
Eu tão Cezánne, ela tão Degas!
E desde então, não paramos mais.
Nunca mais respirei o mesmo ar.
Nunca mais provei com o mesmo sabor.
Nunca mais toquei com a mesma pele.
Ela me enrolou, acendeu e tragou.
Ela me mastigou, me engoliu...
E eu aceitei.
Virou o vocativo favorito.
Às vezes me substantiva, às vezes me objetifica,
Mas com muito carinho me predicativa.
Agora é o sujeito de cada oração, é cada adjetivo, e muito constantemente advérbio de modo, de intensidade, de negação...
Ela é meu verbo de ação favorito, e o único que me conjuga.
Ela me aliciou.
E eu resignifiquei.