terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A Doença

Estava a um tempo considerável sem escrever nada. Acredito que ninguém visite mais meu blog. Acredito que retomá-lo agora também seria um exercício de escrita praticamente secreto. E ultimamente ando esgotada, mentalmente, sendo bombardeada diariamente por notícias, fatos, acontecimentos, acidentes, que me encontram, me atravessam e me deixam como lembrança um resíduo tóxico teimoso. Não sai com banho, já tentei. Não sai com álcool, ou comprimidos para dormir. Eles entram na carne, esburacam o coração e atravessam a garganta, direto pra cabeça, e lá ficam, escavando túneis, remexendo, proliferando como vermes.

Torrentes virtuais fantasiadas de notícias, ostentando hipocritamente uma neutralidade axiológica, ajudam na proliferação e disseminação dos mesmos, atuando como vetores (bem como as redes sociais). Chega um determinado ponto em que não conseguimos mais nos livrar deles. Somos forçados a conviver com a descrença, descaso, cansaço, apatia, inércia, que são os sintomas que vem numa segunda onda, após a primeira fase de contaminação - esta, predominantemente dominada pela resposta raivosa e violenta, uma reação do nosso pensamento-corpo-objeto-crítico como fossem ati-corpos.
Há casos em que o sistema infectado passe para uma terceira fase, bastante popular, onde manifesta-se a ironia, a graça, o deboche, a incredulidade, o sarcasmo parecem ser a única resposta a contaminação. Eu oscilo entre a segunda e a terceira. Já estou infectada ha alguns anos, e afirmo ser cada vez mais difícil conviver com essa doença.

A ciência não iniciou nenhuma pesquisa efetiva - e não acredito que vá efetivamente - pois se tratar de algo tão não-empírico (e andam com dificuldade nos tópicos básicos, de Galileu Galilei a Alexander Fleming), a medicina não acredita ser um caso válido e legítimo a que ela tenha de se ater, a psicologia até consegue entender as suas origens mas não há formas de tratamento testadas e/ou comprovadas. O jornalismo chegou mais próximo da doença, mas devido ao alto risco de contaminação, boa parte de seu corpo esta corrompido, afetado, débil, e apodrecendo aos poucos. A economia não tem dinheiro para gastar, ou tempo disponível, com uma doença que não a atinge diretamente. A sociologia, a antropologia, e a filosofia atuam como enfermeiras na profilaxia e tratamentos holísticos, ayuvedas, com a ajuda de ervas, xamãs, pajés, livros, textos, artigos, entrevistas, falas... com alguma taxa de sucesso, mas em casos muito específicos, de indivíduos isolados, em grupos maiores, sem sucesso algum.

É uma doença que provém de uma infecção, aparentemente. E se espalha rápido, mas atua nos espíritos tal qual no corpo físico. Quando penso espírito faço referência direta ao pensamento propriamente dito, mas também a capacidade de ter fé, de crer. As religiões, enquanto instituições mesmo, continuam, solidas e incólumes, mas a crença... essa enlouqueceu. Adoeceu, brigou, declarou guerra a própria fé e ao propósito da fé (seja ela qual for), não reconhece mais o que é religião e confunde seus Deuses e dogmas com homens e a moral seletiva e restringente da sociedade que os corrompe. Eu lembro que ainda pequena, me diziam que era importante ter fé porque era ela que fazia a gente remar das direções de coisas boas, positivas, pra nós mesmos e para uma comunidade na qual estávamos inseridos. Ensinaram pra mim um monte de regras que hoje eu nem me lembro que existem mais, mas também me ensinaram o conceito de respeito, e como aplicar ele na vida, e que era importante cuidar de si para cuidam BEM dos outros a sua volta. Era minha avó quem me ensinava isso - e tem um peso grande na formação do meu caráter até hoje (mais do que as aulas da catequese). Vovó reza todos os dias, ainda. Não sei mais se por hábito ou por crer, mas ela reza. Quando acorda e quando dorme. Não sei se reza para que tudo melhore ou para que Deus (porque ela é cristã, católica apostólica romana) a leve de uma vez, mas ela se mantém crendo. 

Acreditar foi se tornando uma coisa tão perigosa quanto duvidar. Nunca soubemos o que era a verdade, mas também nunca foi tão difícil distingui-la de mentiras - ou inverdades, que seja. São Tomé anda fazendo mais sentido do que Santo Agostinho. Eu te entendo, Vó. É a doença dos dias atuais, que não tem nome pra mim, mas a senhora também sente, por isso continua rezando.

Estamos todos doentes. E assim permanecemos. Nem todos sabem, mas todos estamos infectados por esse resíduo tóxico. Aos que tem consciência, parabéns, é o primeiro passo. Não há uma cura definida, mas há mecanismos que garantem que conseguimos viver bem com a doença, e podemos criar redes de suporte, para tratamento continuado, como os textos, os grupos de discussão, peças de teatro, filmes, etc. Não cura, mas ajuda muito.

Não há como tratar aos que não se perceberam doentes ainda. Em algumas pessoas, a doença afeta os canais auditivos, de maneira figurativa. Tornam-se surdos e isso potencializa os riscos de danos á visão, e também afeta igualmente as áreas no cérebro responsáveis pelo raciocínio lógico e pelas emoções. Houveram tentativas de resgate dos que não se entendiam como infectados, pouquíssimos resultados positivos, segundo as enfermeiras, porém houve também rompantes violentos, fugas, e a negação ganhou terreno mais uma vez. Vimos que a profilaxia não era mais eficaz. Lamentavelmente.
Quem pode fugir da praga, fugiu. Estão em outras terras, igualmente poluídas, mas o câncer daqui não é como o câncer de lá. A gente cresceu acreditando que o sofrimento é muito mais bacana em uma outra língua. E talvez seja, viu? Sempre há alguma coisa de poético em se aprender uma língua nova, ou em sofrer de outra maneira.


O que eu recomendo?
Que você, pessoa que me lê por algum motivo, ouça os conselhos da minha avó: se cuide  pensando em você e sem deixar de pensar na dor do outro, respeite, e creia - responsavelmente.