sexta-feira, 22 de junho de 2012

Marinheira de primeira viagem

Custei pra perceber que as coisas estavam melhores. Depois que Custódio foi embora fiquei sem rumo, um barco à deriva, meio Madalena-arrependida, só que sem a parte do arrependimento.
No começo nada me fazia mais felicidade do que o espaço em branco que tinha sido deixado por ele, assim como os motivos para achar em outra pessoa o que eu já havia desistido de buscar em Custódio. Eu o traí, mas ao contrário do que todos foram educados para pensar, eu estava bem e satisfeita com a traição.
Ele não descobriu nada, só começou a achar meu jeito mais diferente, um jeito mais alegre, decidido, sem me importar com as coisas que mais me desagradavam que ele fizesse. E confesso que fazia tão de propósito quanto ele fazia o que eu não gostava, era uma disputa de egos, só que não declarada. Duas crianças birrentas querendo atenção, querendo mostrar o quão autossuficientes podem ser.
Ele decidiu ir embora quando todo o estoque de agressividade - velada ou explícita - tinha se esgotado. O próximo passo seria bater com uma clava na minha cabeça e me arrastar pelos cabelos, como o belo homem das cavernas que era. Paramos de nos enfrentar assim, com ele indo embora e declarando que a guerra tinha acabado. Me deixou sozinha nesse barco. Não tão sozinha, afinal aqui já havia uma terceira pessoa, mas me deixou sem o troglodita adorável, me deixou só com a parte boa de navegar, levou a tempestade e me largou com a calmaria.
Senti muita falta do acúmulo de louça suja na pia, das toalhas molhadas em cima da cama, das reclamações sobre futebol e dos gritos pra que eu pegasse mais uma cerveja. Também senti falta da força desnecessária ao me pegar na cama, da mão calejada arranhando meu rosto, do bêbado que tinha pra cuidar todos os finais de semana. Senti falta da falta de sensibilidade, da despreocupação em me ouvir, e da falta de carinho cotidiana. Não sabia o que fazer com tanta paz.
Eu não amava mais Custódio, costumava pensar assim. Aí veio o abandono, e eu comecei a reparar nas lacunas que ele preenchia, na saudade que me flagrei sentindo, e então me senti mal com a ausência dele, como se entrasse um lobo na minha casa e me mordesse faminto todas as vezes que eu pensasse nele, era incômodo assim, dolorido assim.
Custódio não me batia nunca, não fisicamente. Ele me batia na alma, me oprimia e me negligenciava, como se eu fosse só uma mobília da casa, uma empregada. Não tolerava mais a iminência da agressão física, as minhas fugas dentro de mim, isso tudo me cansava.
O tempo foi passando e as manhãs vinham vindo com a mesma leveza, paz e incômodo. Sentia a saudade e o alívio dentro de mim, como a maré subindo e descendo; ora a dor, ora a tranquilidade.
Passei a não ficar tanto tempo mais em casa, saía mais, vivia mais, aproveitei pra me envolver mais comigo mesma. Gostava de caminhar ao fim da tarde, passar os pés nas ondas que já recuavam areia afora na beirinha da praia, com o sol já levemente alaranjado despedindo-se do dia e inaugurando a noite com seu manto azul-escuro. O melhor mesmo eram as cores e os sons. Os tons claros se misturando com os tons escuros, as ondas quebrando em vários sons diferentes, mais violentos ou mais fracos, as cores frias misturando-se com as quentes pelo céu, as nuvens se esticando, se adensando e se transformando perto do horizonte. Aquele breve momento me trazia o que de melhor existia nessa separação: a solidão.
A solidão proporcionada pelo afastamento e sumiço de Custódio era confortável e a cada crepúsculo eu sentia menos o incômodo da ausência dele. Por não ficar mais em casa, não me sentia mais agoniada com o possível tocar do telefone, da campainha, ouvir um possível barulho de chaves na porta, uma carta. Mas ele jamais ligaria, ou tocaria a campainha, Custódio era um homem de arrombar portas e de conseguir o que queria com muita truculência, pela força ou pela dor, a qualquer custo. Fato era que ele não mais queria estar comigo, a minha felicidade o incomodava e ele não era troglodita o suficiente pra oprimir a minha sensação de alegria debaixo de pontapés e socos.
Custódio me deu alegria no final das contas. Não posso reclamar de todas as mazelas que passei ao lado dele. Navegamos juntos todo um Oceano de surpresas, mares revoltos e monstros marinhos, até que um belo dia achei uma garrafa com uma mensagem e vim parar na minha ilha particular, onde podia agir como bem quisesse.
Logo depois que me vi solteira, ao contrário do que podia-se pensar, não continuei meu caso tórrido de amor. Terminei-o, agora não me era mais útil ser tão feliz ao lado de outro homem que não Custódio. Só queria me bastar, e assim o fiz. Não queria ninguém navegando com meu barco que não fosse eu mesma, a Capitã da minha Nau, a mandatária da minha própria vida. Deixei ao mar todas as garrafas que encontrei, todos os homens que avistei a se afogar.
E foi então que tive um encontro com a minha própria liberdade. E foi com ela que me amasiei e fiz dela meu porto seguro, na minha ilha particular, onde ancorei de fato e lá fiz minha morada.
E foi então que percebi que nem Custódio nem qualquer outro, eu só queria ser mulher de mim mesma, e a partir de então que percebi que tudo estava melhor, por fim, como eu queria.

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