segunda-feira, 18 de abril de 2011

Lá pelos anos 30...

Entrei pela porta velha, depois de descer as escadas que levavam ao porão, onde a diversão realmente começava.
O cheiro de álcool misturava-se com o aroma de cada cigarro e charuto entre os dedos de alguns. Tinha um cheiro maior que isso. Era doce, era luxúria. Uma boemia que não deixava nenhuma mulher deixar de sorrir com lascívia e nenhum homem olhar sem malícia.
No bar Ed fazia o combustível da noite, em forma de vários drinks, e com uma habilidade espantosa.
- Ei, boneca! Seu vestido diminui a cada vez que te vejo.
- Quando eu estiver sem ele pra você, me avise para que eu tire o resto.
Algumas risadas, e meu whisky já estava na minha frente, com pouco gelo. Na medida certa, como só o Ed sabe.
- Vai cantar o que hoje, boneca?
- O que meu coração mandar e meu ventre desejar.
- Então vai ser delicioso, não?
- Como sempre, Ed... Como sempre será.
Tiro minhas luvas, acendo meu cigarro. O aroma lembra canela, assim como o gosto.
A ruiva chega, e senta-se na mesa já separada pra ela. Nenhuma de nós éramos importunadas, por mais que o ambiente fosse essencialmente masculino, e machista. A ruiva era muito respeitada, até por ser uma autêntica contraventora. Ela usava calças constantemente, aliás, acho que nunca a vi de vestido. Seu cabelo não era loiro, como o da maioria das mulheres. Ela não era desse país, provavelmente França, ou Inglaterra?
Ela me instigava, confesso. Poderia me desconcentrar completamente se ela me olhasse com aqueles olhos verdes.
- Chegou minha hora, Ed.
- Vai lá, boneca, divirta-nos.
E subi no palco, mais uma vez, levando meu cigarro e meu whisky. Ela sempre ia me ver cantar, sempre me olhava fixamente, e eu me sentia como uma presa de animal carnívoro, mas não tinha medo de ser devorada. Aliás, esse sentimento era o que mais me confundia.
Fui anunciada pelo meu pianista querido. E logo comecei a cantar... Nessa época, o que mais se ouvia às escuras era a música de negro, o jazz e o blues. Eu não gostava muito desse rótulo, mas era assim que as pessoas se referiam ao ritmo.
Gostava de ser uma branca que cantava como negra, isso me envaidecia, e os homens sempre me elogiavam muito. Ganhava todo tipo de presentes, convites, propostas e admiradores. Mas não me satisfazia com nada disso. Pra mim era um jogo. Meu único amigo era mesmo o Ed.
Aquela ruiva, da qual nem sabia o nome, era o meu mistério, o que eu queria desvendar. Era o que me mantinha ainda cantando nessa espelunca clandestina no sul de New Orleans.
Começo a música... Todos sentem o grave do contra-baixo, o piano sofrendo, o saxofone chorando e a minha voz...doendo. Provocando uma dor bela e macia. Nos tons mais graves, nos mais altos, ela sempre me olha, e me sorri. Praticamente me cobiça o tempo todo.
Depois de duas músicas, começo a andar pelas mesas, enquanto canto. Passo pela mesa dela, não tenho a menor coragem de lhe tocar as mãos, nem sentar no colo, nem flertar, porque sei que posso perder o fôlego, desafinar. Acho melhor só beber sua bebida.... E depois sair com um olhar escorregadio por cima dos ombros. Ela adora.
Deve ser a décima noite que ela vem aqui, pra me ver cantar. Ela senta no mesmo lugar, pede a mesma bebida, fuma o mesmo cigarro, os mesmos gestos...Parece querer me testar, esperando alguma reação minha, e eu esperando algum sinal dela.
Volto pro palco, canto mais meia dúzia de músicas até o meu primeiro descanso. Desço de lá ovacionada, sorrio como retribuição, mas não vejo a ruiva, isso me deixa um pouco decepcionada.
- Ed, o que achou de hoje?
- Que a cada noite sua voz fica melhor.
- Eu não esperava menos de você.
- Eu também não.
Nesse momento, me viro pra saber quem disse isso. Encontro os olhos verdes da ruiva encarando os meus em uma distancia que me deixa nervosa, e bem atrás de mim. Não tive reação, mas sabia que deveria dizer alguma coisa.
- Obrigada. Até onde eu saiba nunca tinha recebido um elogio seu. A que devo a lisonja?
- Ao gim. Se não fosse por ele, ia continuar sem coragem de te elogiar pessoalmente e de tão perto.
- Então façamos um brinde ao gim! Ed, dois desses pra nós!
Em segundos estávamos virando os copos... E era a hora de saber o nome daquela ruiva misteriosa.
- Brindamos e eu sequer sei seu nome. Que falta de educação a minha, não? Eu sou Barbara, Barbara Edmond, mas todos, assim como você, só me conhecem por Billie.
- Bem, eu não subo no palco todas as noites, então prezumo que nunca tenha ouvido falar de mim. Sou Evelyn Jamison, mas costumam me chamar de Ninny.
- Muito prazer, desconhecida.
A partir daquele momento meus pensamentos confusos já tinham nome, sobrenome e apelido. Ela vinha ali pra me olhar e eu vinha reparando isso há tempos. O que importava se eu estava com medo? Eu estava com vontade de estar ali, e descobrir que tipo de sensação era essa. Minha vida era muito desequilibrada, completamente notívaga e boêmia. Os homens que me viam e me desejavam eram ricos, mas nenhum deles deixaria essa vida por um casamento. Nenhum deles queria casar comigo por me amar, mas pra me ter, pra me transformar em propriedade e empregada. Muitas mulheres aceitariam viver dessa forma, mas eu era diferente nesse ponto.
Talvez fosse por isso que estava tão intrigada com essa nova sensação. E não tinha medo, apesar de tudo me dizer que era aparentemente ruim, não fazia sentido fugir disso.

Depois voltei a cantar, Ninny voltou pra mesa. No final da noite, recebi algumas flores, propostas e insinuações de alguns homens, o que era normal.
- Ed, se livre dessas flores e cartões pra mim, ok?
- Não sei como você consegue ser assim e eles continuarem se arrastando por você, boneca.
- É o segredo: ignorar.
- Jamais conseguiria ignorar uma mulher linda e que canta tão bem.
- Por isso sempre está ao meu lado, seja inteligente e preserve minha companhia, e não deseje meu sexo como todos os outros, tudo bem, Ed?
- Claro... Posso dar as flores pra uma moça?
- Desde que ela não saiba de onde elas vêm... Por que não?
Ed estava saindo com uma menina que raramente aparecia no porão. Ela era camareira em um hotel ali perto, era uma mesmo menina ainda, muito pura pra ser maculada por aquele ambiente. E apesar de tudo, Ed servia pra ela. Era um bom rapaz, com todas as brincadeiras e indiretas, era o único que tinha a consideração de me ouvir, e me entendia pelo olhar. Era um rapaz digno.
Me despedi de Ed, peguei minhas luvas e meu trench coat, e fui subindo as escadas. Ninny tinha desaparecido enquanto falava com Ed. Não entendi porque, mas senti um aperto, como quem sente falta e lamenta, por não ter saído dali com ela.
Depois de subir as escadas, agradecer e receber meu pagamento, fui pra casa, e assim que atravesso a rua, uma surpresa.
- Achei que já tinha ido, Ninny.
- Na verdade eu só vim oferecer uma carona pra você.
- Não sabia que você dririgia.
- Nada oficial, mas até dirijo bem. Então, aceita?
- Moro perto, mas aceito. Pelo menos não me acusa de não ser educada.
Pude ouvir sua risada, e como esse som mexeu comigo. Me deu satisfação instantânea.
Não demorou muito e chegamos na minha casa. Modesta, pequena, um pouco desorganizada e quase sem móveis ou alimento dentro da geladeira. Mas tinha algumas bebidas.
- Bem, já que me trouxe até aqui, por que não entra e me acompanha em mais um brinde?
- Vou aceitar logo, antes que você mude de idéia.
Entramos, e pedi desculpas pela bagunça, e estava mesmo de doer. Não sabia o que queria com ela ali, na minha casa, bebendo comigo, mas queria que ela estivesse ali, de qualquer maneira. Aquelas calças, as mãos no volante do carro enquanto dirigia...era tudo tão novo, e excitante!
Achei um restinho de gim numa garrafa perdida em um canto da cozinha, enchi dois copos pela metade e levei pra sala, onde ela me esperava encostada na poltrona, de pernas cruzadas, parecia estar a vontade, apesar da desarrumação. Pegamos os copos, ela levantou e brindamos.
- Um brinde a quê?
Nesse momento o sorriso dela ficou sério. Os olhos dela pareciam penetrar em mim e eu senti um magnetismo fora do normal me puxando pra dentro daqueles olhos, minha boca estava quente, queria tocar os lábios dela. Queria sentir o toque, a língua. Fomos nos aproximando lentamente. eu fechei os olhos, a minha respiração estava arfante.
Os copos caíram, os olhos fechados, os lábios se massageando, as línguas dançavam, era tudo perfeito. Por um momento me senti estranha, mas depois tudo parecia ser normal, tudo me pareceu normal, eu não pensava como os outros, eu só sentia.
Ela foi se apossando do meu corpo, e quando percebi, meu vestido estava no chão, minha meia calça com fios repuxados, e tudo que eu queria era sentir a minha nudez na nudez dela. Queria ouvir a conversa entre os nossos corpos, queria sentir meu corpo vibrando e queimando como já estava.
Essa noite nos entregamos uma a outra, e eu permiti que ela fizesse de mim o que quisesse, porque a minha curiosidade e vontade eram maiores do que meu instinto de preservação.
Não me arrependo... Porque nessa noite foi onde eu conheci o sentido de apaixonar-se, quando me senti tomada por algo maior que qualquer sentimento passageiro. A impressão era que isso não ia passar. E não passou. Mesmo depois de tanto tempo, ainda posso vê-la enquanto canto, ainda posso dormir com ela em minha cama e sentí-la em toda a sua completude. E sei que quando amanhecer ela vai estar lá, e no entardecer vou poder olhá-la.
O tempo passou, desde então... E todos os dias de Ninny e Billie são tão bons e intensos quanto o primeiro. Uns mais fortes, outros nem tanto, mas sempre intensos e repletos... Repletos de tudo.

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